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As memórias perdidas da nação moçambicana: Terra Sonâmbula e O Outro Pé da Sereia de Mia Couto

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Academic year: 2021

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Kamila Krakowska

Universidade de Lisboa krakowska.rodrigues@gmail.com

As memórias perdidas da nação moçambicana:

Terra Sonâmbula e O Outro Pé da Sereia

de mia couto

resumo:

No presente ensaio problematizaremos a relação entre a memória e o esqueci-mento no processo da construção da identidade nacional, analisando dois ro-mances do escritor moçambicano, Mia Couto. Terra Sonâmbula e O Outro Pé da Sereia apresentam várias personagens que partem em viagem na busca de memórias perdidas, tanto do seu próprio passado como do passado coletivo da nação. O primeiro livro trata do sofrimento causado pela longa guerra civil da pós -independência enquanto o outro aborda a história colonial de Moçambique e o tema da escravatura.

palavras ‑chave: memória, esquecimento, Mia Couto, identidade nacional,

lite-ratura moçambicana.

abstract:

Lost memories of the mozambican nation: terra sonâmbula and o outro Pé da Sereia by Mia Couto

The aim of this article is to question the relation between memory and oblivi-on in the process of coblivi-onstructing natioblivi-onal identity, analysing two novels by the

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Mozambican writer Mia Couto. Terra Sonâmbula and O Outro Pé da Sereia present several characters who travel in search of the lost memories from their own past as well as from the common past of the nation. The first novel deals with the suffering caused by the long civil war in the post -independence period while the other is focused on the Mozambican colonial history and the subject of slavery.

Keywords: memory, oblivion, Mia Couto, national identity, Mozambican

literature.

Falar sobre a memória no contexto nacional conduz inevitavelmente a questões como a relação entre memória e esquecimento, entre me-mória individual e coletiva ou, finalmente, entre meme-mória e história, conforme discute Paul Ricoeur em La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli [2000]. No presente ensaio problematizamos estas questões sob a perspetiva da narrativa pós -colonial, analisando dois romances do escritor moçambicano, Mia Couto. Tanto Terra Sonâmbula como O Outro Pé da Sereia contam a história de personagens que viajam em busca de memórias perdidas, tanto do seu próprio passado como do passado coletivo da nação. O primeiro livro trata do sofrimen-to causado pela longa guerra civil da pós -independência enquansofrimen-to o outro aborda o passado colonial de Moçambique e o tema da es-cravatura. As andanças sonâmbulas das várias personagens e o seu desejo de (re)inventar o passado incitam questões sobre a fidelidade da memória, sobre a relação entre o Eu e o Outro numa comuni-dade com um passado turbulento e sobre a estratégia de constru-ção da identidade (individual ou coletiva) a partir de memórias não fidedignas.

Os dois romances são constituídos por duas narrativas paralelas. Em Terra Sonâmbula, Muidinga, um rapaz traumatizado, encontra no interior de um machimbombo incendiado no meio de uma estrada deserta cadernos escritos por Kindzu durante a sua odisseia pelas ter-ras de Moçambique no auge da guerra civil. Os cadernos, lidos pela criança cada noite, contam histórias de várias personagens que cruza-ram o caminho de Kindzu, entre os quais Dona Virgínia, uma velha

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senhora portuguesa que vive reinventando as suas lembranças. Em O Outro Pé da Sereia, que entrelaça uma narrativa contemporânea com fragmentos de um fictício manuscrito quinhentista, não é ape-nas uma criança que sofre de amnésia, mas toda a comunidade de Vila Longe. Essa é a aldeia natal de Mwadia, uma mulher jovem que é obrigada a regressar a casa para abrigar uma misteriosa e antiga es-tátua de Nossa Senhora e deste modo salvar o seu marido. Ali, a visita de um casal de americanos desencadeia uma série de acontecimen-tos que forçam os moradores de Vila Longe a confrontarem -se com o seu passado. Ao analisar as diversas estratégias de afirmação e de silenciamento do passado presentes nestes dois romances, este artigo vai discutir a relação entre memória e esquecimento no processo da construção da identidade nacional.

Muidinga é um rapaz sem história. No primeiro capítulo o nar-rador resume os acontecimentos que o levaram a sair do campo de refugiados na companhia do velho Tuahir, com quem não o unem ne-nhuns laços de sangue. Tendo sobrevivido a uma doença que “quase o arrastara até à morte” [Couto, 2008: 12], “Muidinga se meninou ou-tra vez” e o velho “teve que lhe ensinar todos os inícios: andar, falar, pensar” [ibidem: 12]. Quando o menino insistentemente faz perguntas sobre o seu passado, Tuahir responde decididamente “Você não tem estória nenhuma” [ibidem: 38]. Só quando a criança esfomeada tenta comer uma raiz de mandioca venenosa é que o velho decide contar ao rapaz como o encontrou moribundo no campo de refugiados. Se-gundo o relato de Tuahir, este encontrou o menino quase sem vida e cuidou dele até que, gorando todas as expectativas, ele despertou como “uma criança a nascer, quase em estado de saúde” [ibidem: 57] e foi batizado Muidinga. A amnésia, a ausência de alguma “estória”, permite a Muidinga recomeçar uma vida nova sem a bagagem trági-ca da guerra. No entanto, este metrági-canismo de autoproteção implitrági-ca também a perda da identidade. Sem conhecer o seu verdadeiro nome e a sua família, marcos básicos de autodefinição, o rapaz sente um vazio epistemológico. No episódio da mandioca, Muidinga é literal-mente alimentado com a história sobre o seu passado para que ganhe forças para seguir caminho em busca da comida.

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A sua persistência em descobrir o passado apesar da visível relu-tância de Tuahir e a tentação de se identificar com diferentes perso-nagens dos cadernos de Kindzu (especialmente com Junhito, irmão de Kindzu, e com Gaspar, filho desaparecido de Farida) derivam da necessidade de ter uma âncora que lhe permita definir o seu lugar no mundo e criar laços de pertença. De facto, o rapaz ativamente cons-trói estas identidades “emprestadas”1 quando convence Tuahir a que

representem as personagens de Kindzu e do seu pai Taímo numa brin-cadeira que suspende a fronteira entre as duas narrativas paralelas [ibidem: 168 -170]. Além disso, o rapaz torna -se o narrador da história de Kindzu quando conta a Tuahir “tudo de cabeça, palavra por pala-vra” [ibidem: 99] sem recorrer às folhas escritas. Este ato de recontar é também um ato de emancipação e autodefinição. Como narrador, Muidinga torna -se o autor da sua nova história inventada.

No entanto, a sua identidade “emprestada” é volátil e em cons-tante (re)construção, tal como a paisagem à volta do machimbombo incendiado. Este mundo sonâmbulo, tal como o deserto metafórico de Zygmunt Bauman2 [1996: 23], é um cenário de busca. Neste contexto

não é possível erguer uma só identidade bem definida. Muidinga vai construindo várias identidades fragmentadas que se vão desmoronando com a passagem do tempo e com as suas andanças pela estrada mor-ta e pelos cadernos de Kindzu. Como argumenmor-ta Ana Mafalda Leite, a viagem de Muidinga (embora, dentro da lógica do romance, ele des-cubra que não é ele a andar, mas a estrada) é uma viagem iniciática:

1 Segundo Tuahir, “os escritos de Kindzu traziam ao jovem uma memória

emprestada sobre esses impossíveis dias. Ao menos ele acreditasse tudo aquilo ser fantasia, estoriazinha que se conta para fazer de conta” [Couto, 2008: 138].

2 Zygmunt Bauman usa a metáfora do deserto para visualizar a condição do

mundo pós -moderno (e também, na nossa opinião, pós -colonial) onde a pre-servação de identidade construída passou a ser um desafio: “the desert, though comfortingly featureless for those who seek to make their mark, does not hold features well. The easier it is to emboss a footprint, the easier it is to efface it. A gust of wind will do. (…) In a desert -like world it takes no great effort to blaze a trail – the difficulty is how to recognize it as a trail after a while” [Bauman, 1996: 23].

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Muidinga recebe o legado por escrito, são os caderninhos de Kindzu; mas recupera a postura bárdica ao retransmiti -los oralmente, todas as noites, à volta da fogueira, ao Velho Tuahir, enquanto narrativa iniciática, de aprendizagem de valores éticos e morais, de comportamentos, de ex-periência e de sabedoria. (…) A escola da sociedade tradicional consiste na aliança entre o acto recriativo de uma palavra legada, e a educação pela palavra repetida [Leite, 2003: 60].

Embora esta estudiosa se concentre na complexa relação entre a oralidade e a escrita na análise das leituras de Muidinga, as suas ob-servações sobre a importância do legado escrito e da postura bárdica da criança são também fundamentais para a melhor compreensão do papel complementar de memória e de esquecimento. Para sobreviver ao trauma da guerra, Muidinga precisa esquecer o seu passado. No entanto, esta ausência protetora é, de facto, uma ferida na sua inte-gridade. Por isso, o rapaz envereda pelos caminhos feitos de estórias, mitos e sonhos, tal como a própria terra sonâmbula que “anda procu-rar dentro de cada pessoa, anda juntar os sonhos” [Couto, 2008: 197]. Assim, Muidinga torna -se a metonímia da própria terra, do corpo da nação moçambicana.

Esquecer não é um deliberado ato de renúncia, mas um processo natural de seleção e organização de informações guardadas na memó-ria de longo prazo. Há muitas e vamemó-riadas explicações para que certas recordações sejam retidas na nossa memória durante décadas enquan-to outras são apagadas. No entanenquan-to, qualquer que seja a razão, há uma tendência natural para preencher o passado com narrativas que supor-tem a nossa identidade. Como argumenta Benedict Anderson:

All profound changes in consciousness, by their very nature, bring with them characteristic amnesias. Out of such oblivion, in specific historical circumstances, spring narratives. (…) How strange it is to need another’s help to learn that this naked baby in the yellowed photograph, spraw-led happily on rug or cot, is you. (…) Out of this estrangement comes a conception of personhood, identity (yes, you and that naked baby are identical) which, because it cannot be remembered, must be narrated [Anderson, 1991: 204].

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Tal como as pessoas, também as nações precisam destas histó-rias/estórias para fundamentar a ideia da comunidade imaginada. De facto, já Ernest Renan no seu estudo clássico “Qu’est -ce qu’une na-tion?” [1991] defende que o esquecimento de certos acontecimentos históricos é vital para a fundação de uma nação. Segundo Anderson, a única, embora significativa, diferença entre a memória individual e “nacional” deriva do facto das nações não terem um nascimento claro e bem definido no tempo e espaço e a sua morte, se acontecer, nunca ser natural [ibidem: 205]. Neste contexto, a amnésia de Muidin-ga – o apaMuidin-gamento completo do seu passado – pode ser interpretada como uma metáfora da impossível narrativa da nação moçambicana em face da tragédia da guerra civil. No entanto, para curar as feridas e (re)construir a comunidade imaginada após o fim do conflito arma-do é preciso quebrar o silêncio e “andar juntar os sonhos” [Couto, 2008: 197] para encontrar uma narrativa que conjugue as múltiplas vozes que compõem esta nação.

Em O Outro Pé da Sereia, o esquecimento parece constituir um fundamento da identidade dos moradores de Vila Longe. Um dos seus habitantes mais proeminentes, o empresário Casuarino, “tinha medo de se lembrar e não se reconhecer no homem que, um dia, já fora” [Couto, 2006: 339]. O processo de autorreconhecimento, constitutivo para a formação da identidade segundo a aceção de Benedict Ander-son acima citada, é perturbado pelo medo. Em vez de ir preenchendo gradualmente os vazios da memória com narrativas reais ou imaginá-rias para chegar a um estado de autodefinição, as personagens dessa aldeia fictícia vão pouco a pouco apagando quaisquer vestígios do seu passado turbulento. Uma das duas epígrafes do capítulo 17, atribuída ao barbeiro local Arcanjo Mistura, descreve este processo:

Primeiro, perdemos lembrança de termos sido do rio. A seguir, esquecemos a terra que nos pertencera. Depois da nossa memória ter perdido a geografia, acabou perdendo a sua própria história.

Agora, não temos sequer ideia de termos perdido alguma coisa

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Como explica o narrador, o rio Zambeze “servia de refúgio e bar-reira para assaltos de estranhos e vizinhos, guerreiros ferozes e rapto-res de escravos” [Couto, 2006: 343] e os povos que habitaram as suas margens eram descendentes de escravos e escravocratas, de vítimas e culpados, de perseguidos e assaltantes, vivendo juntos numa comu-nidade. Por isso, esquecer tornou -se uma estratégia de sobrevivência, segundo apontam Allen e Barbara Isaacman, cuja obra Slavery and Beyond: The Making of Men and Chikunda Ethnic Identities in the Unstable World of South -Central Africa é citada em epígrafe [Couto, 2006: 309]. O papel social do mecanismo de “amnésia histórica”, ter-mo usado por Allen e Barbara Isaacman [Isaacman, Isaacman, 2004], é simbolicamente representado no romance pela Árvore do Esque-cimento. Como já referimos num outro artigo nosso [Krakowska--Rodrigues, 2012: 90], os moradores de Vila Longe estabeleceram um ritual comum que consistia em girar à volta do tronco dessa árvore milenar e permitia apagar completamente o passado e as origens da pessoa sujeita a esta cerimónia. Em consequência, sem passado e sem identidade, o indivíduo não podia ser responsabilizado. A necessida-de vital necessida-de esquecer necessida-deriva aqui não só da experiência necessida-de trauma, como é o caso de Muidinga, mas da complexa relação entre o trau-ma e o sentimento de culpa. No seu estimulante livro sobre trautrau-ma e narrativa, Cathy Caruth argumenta: “History, like trauma, is never simply one’s own, (…) history is precisely the way we are implicated in each other’s traumas” [Caruth, 1996: 24].

É justamente sobre esta relação entre o trauma e a história e sobre as suas implicações para a formação da nação moçambicana que Mia Couto fala na entrevista realizada no âmbito do projeto Nação e Nar-rativa Pós -colonial:

O processo de construção em Moçambique foi feito com esquecimentos sucessivos. Quer dizer, nós somos mais uma nação não porque falamos a mesma língua e porque lembramos as mesmas coisas, mas porque nós esquecemos as mesmas coisas da mesma maneira. Temos a mesma von-tade de esquecer. Então, é uma espécie de edifício feito de ausências, mais do que presenças.

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E conclui:

A escrita literária pode levantar [estas questões] porque se percebe que está a tratar isso como uma história; como uma história, digamos assim, procurando não apontar dedos e culpas. E por isso a escrita pode ter este efeito curativo, não é? Uma espécie de catarse, que é importante ser feita [Leite et al., 2012: 165].

Tal como a escrita pode ter um efeito curativo para uma sociedade traumatizada por diversos acontecimentos ao longo da sua história, também as personagens nos dois romances coutianos recorrem à es-crita para sarar as suas feridas e saudades. Em Terra Sonâmbula, en-quanto Muidinga preenche a sua história com as memórias “empres-tadas”, as memórias de Dona Virgínia / Virginha3 são como pequenos

núcleos narrativos que permitem construir múltiplos enredos, mani-pulando o passado, o presente e o futuro. A velha portuguesa duran-te décadas viveu na província moçambicana, dominada pelo marido violento e sonhando com o regresso à sua terra natal. Depois da morte de Romão Pinto, a viúva refugia -se na loucura e enclausura -se na sua quinta na companhia das crianças locais a quem conta inúmeras estó-rias sobre a sua família:

Dona Virgínia Pinto. Ali estava ela, varandeando no exercício de sua últi-ma meninez. (…). A portuguesa se vai deixando em tristonhas vagações. Branca de nacionalidade, não de raça. O português é sua língua materna e o makwa, sua maternal linguagem. Ela, bidiomática. Os meninos ne-gros lhe redondam a existência, se empoleirando, barulhosos, no muro [Couto, 2008: 172].

As crianças ouvem entusiasmadas as histórias sobre os antepassa-dos de dona Virgínia, como se fizessem parte da sua família. Quando pedem à “avó” para contar “aquela do pai de seu pai” [ibidem: 174], “Virginha sorri, grata dos meninos se introduzirem em sua família,

3 Ao longo da narrativa o nome aparece com duas grafias. Phillip

Roth-well apresenta uma interpretação interessante da função destes homófonos [2004: 85].

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como se eles fossem tão antigos como ela” [ibidem]. No entanto, tanto as nuances do enredo como a caracterização dos protagonistas vão variando ora pela intervenção dos ouvintes (“Os meninos se dis-putam, todos querendo mexer na fábula da velhinha” [ibidem]) ora pela invenção da própria autora. Kindzu explica este processo no seu caderno:

Mais Virgínia repete os contos mais a verdade se resvala: o avô Cruz de olhos louros, hoje; amanhã um negro de rosto carapinhoso. A criançada nem se importa. Verdade, em infância, é um jogo de brincar. Em redor da anciãzinha, os miúdos sempre folgam, sem desilusão [ibidem: 175].

Na sua análise da personagem de Dona Virgínia, Peron Rios com-para a postura perante a realidade observada das crianças e dos idosos e argumenta que não é apenas “a infância que se responsabiliza pelo alargamento do espaço virtual” [Rios, 2005: 76], um espaço que se pode definir como toda a realidade captada e/ou criada pela mente humana. “A velhice”, segundo Rios, “por um caminho inverso ao so-nho pueril, também delineia seus camiso-nhos” [ibidem]. O estudioso tece uma linha de interpretação estimulante focando as diversas “me-mórias inventadas” da velha senhora e conclui que a reinvenção das memórias de Dona Virgínia representa “uma metáfora da História não apenas como ciência, mas também como ficção, como poesia (poeisis: criação)” [ibidem: 77]. No entanto, a sua insistência em diferenciar as memórias inventadas pelos jovens classificados como sonhadores e os velhos que, supostamente, “querem retornar a um paraíso perdi-do, guardado na memória” [ibidem: 76 -77] parece precipitada. Como revela a passagem acima citada, tanto Dona Virgínia como as crian-ças que a acompanham partilham os mesmos sonhos e as mesmas estórias. Enquanto a portuguesa “lembra” um avó “negro de rosto carapinhoso” [Couto, 2008: 175], a criançada entusiasma -se ouvindo os episódios da vida da sua imaginária família.

Neste contexto, a leitura de Phillip Rothwell aprofunda muito mais a relação entre a memória e a narrativa e permite compreender com maior nitidez a inter -relação entre a memória e a identidade desenvol-vida em Terra Sonâmbula. Ao analisar a cena em que Dona Virgínia

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pede a Farida para “enviar -lhe cartas, falseando autorias, fingindo o longe” [ibidem: 83], o estudioso argumenta:

Virgínia is to be written, her history and her present are to be refashioned through the text; she becomes the letters as well as the destination of the letters. She is the subject and the object – both direct and indirect – of the writing. (…) Furthermore, it is an interaction that foregrounds the oral nature of missive texts because the letters are used to recreate constantly new subjectivities for Virgínia, in a process that follows the strategies of an oral storyteller and not the archetype of writing as a mechanism used to stabilize knowledge or identity [Rothwell, 2004: 86].

Tal como Muidinga, Dona Virgínia preenche o seu passado com as narrativas que são, de facto, uma expressão da busca de identidade. As estórias são um veículo que permite partir em imaginárias viagens e explorar novos territórios identitários. O rosto do avô da senhora por-tuguesa ora vai escurecendo ora clareando na sua (falseada) memória consoante as mudanças na sua própria autoimagem. Como destaca Rothwell na passagem acima citada, contar estórias é uma estratégia de transformação, de mudança. A identidade dessa mulher “bidiomá-tica” [Couto, 2008: 172] não pode ser encaixada numa única narrativa hegemónica. Narrando em duas línguas e oscilando entre as fragmen-tadas lembranças sobre a família portuguesa e sobre a experiência da vida africana, Dona Virgínia consegue construir “um outro modo de ler e ver a trama das diferenças” [Padilha, 2005: 26], um novo olhar que Laura Padilha considera imprescindível para criar “um fecundo espaço de mútuas possibilidades de entendimento no qual igualmente proliferam muitas cumplicidades e inúmeras histórias entrelaçadas” [ibidem: 25 -26]. “Imaginando” as suas memórias, a velha portuguesa cria uma narrativa incompleta, aberta e em constante transformação que desafia as narrativas normativas sobre identidades bem definidas e unidimensionais.

Além disso, os atos de falsificar as cartas e de recortar as foto-grafias antigas, criando novas realidades e novas memórias, parecem desafiar a suposta objetividade da historiografia que é fundamen-tada em tais artefactos. O carácter parcial e, de facto, subjetivo da

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historiografia tem sido alvo de críticas e polémicas na época pós--moderna e o conceito de verdade histórica tem sido desafiado por vários estudiosos, entre os quais se destaca Hayden White [2001]. No entanto, a rivalidade entre o subjetivo e o coletivo revela -se ainda mais complexa quando se considera a questão da memória. Como explica Paul Ricoeur:

C’est dans cette situation hautement polémique, qui oppose à une tra-dition ancienne de réflexivité une tratra-dition plus jeune d’objectivité, que mémoire individuelle et mémoire collective sont misses em position de rivalité. Mais ce n’est pas sur le même plan qu’elles s’opposent, mais dans des univers de discours devenus étrangers l’un à l’autre [Ricoeur, 2000: 114].

A evasão de Dona Virgínia que rejeita a aparente verdade objetiva e (re)cria os artefactos históricos que lhe permitem inventar novas memórias pode ser lida como uma metáfora da suspensão da oposi-ção artificial entre a memória individual e coletiva, pela qual clama Ricoeur. A memória individual da velha portuguesa é subjetiva e flui-da, mudando com cada estória contada às crianças. No entanto, essas memórias imaginadas são fruto da sua experiência de vida fronteiriça, liminar. É nesse falseado passado que a mulher expressa a sua identi-dade múltipla: bidiomática, branca e negra. É nele que se cruza a me-mória individual de uma velha portuguesa que vive em Moçambique e a memória coletiva dos viajantes, dos imigrantes, dos deslocados e de todas as comunidades multiculturais.

Em O Outro Pé da Sereia a reescrita da memória histórica da co-munidade também é tecida por múltiplas narrativas (re)inventadas. Mwadia envereda pelas folhas do manuscrito sobre a viagem do jesuíta Dom Gonçalo de Silveira ao império de Monomotapa e estu-da os livros sobre a história de colonização de Moçambique procu-rando inspiração para criar a sua própria narrativa sobre o passado da nação e a recontar ao casal de estudiosos americanos durante encenados transes espirituais. O tema de reescrita histórica neste ro-mance já foi abordado num outro artigo nosso [Krakowska, 2010], mas é importante notar que as noções de memória e de história são

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frequentemente sobrepostas e inseparáveis. Como argumenta a pro-pósito Elena Brugioni, o episódio do transe “parece apontar para um processo de reminiscência que se conjuga com a descoberta da chamada tradição e que se opõe a uma dinâmica de esquecimento que, em rigor, parece constituir um tópico central desta narração” [Brugioni, 2012: 146].

Enquanto Mwadia narra o passado procurando o sentido do pre-sente, Arcanjo Mistura, o barbeiro de Vila Longe, sente necessidade de (re)inventar o seu presente para fundamentar o seu passado. O ho-mem cria falsas missivas que têm o poder de mover “o passado dentro do presente” [Couto, 2008: 82], adaptando aqui a citação de Terra Sonâmbula sobre as cartas de Dona Virgínia. O antigo revolucionário ficou profundamente desiludido com a situação política e social do país pelo qual tinha lutado:

No centro da única praça, Arcanjo Mistura há tempos que se exerce como barbeiro. De tanto tesourar, já tem o polegar calejado. O polegar e a alma. Arcanjo Mistura – Mestre Arcanjo, como lhe chamam – é um homem desiludido, amargado com o rumo político do país, inconfor-mado com aquilo que chama o «prateleirar» da Revolução [Couto, 2006: 139 -140].

O barbeiro é o autor dos comunicados secretos sobre a suposta que-da de um navio de espionagem americano, transmitidos a uma estação de correios local que deixou de funcionar há anos. Além disso, quando Benjamin Southman – um historiador americano que veio visitar a vila – desaparece, o homem confessa que tinha morto este “espião ao servi-ço do governo americano” [ibidem: 337]. Forjando as missivas oficiais e confessando um assassinato que não tinha acontecido, Mestre Ar-canjo tece uma narrativa que lhe permite reviver as lembranças da luta pela independência de Moçambique e, provavelmente, todos os ideais que o levaram a dedicar a sua vida a essa missão. Velho e doente, parecia “um guerreiro derrotado, sem guerra nem exército” [ibidem: 339]. No entanto, entre as inexistentes paredes da barbearia, o homem vai criando novos cenários e novos desafios que lhe permitem manter a postura de “um solene cavalheiro” [ibidem: 367].

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A evasão pode ter um efeito curativo permitindo silenciar os trau-mas e as culpas e construir um refúgio que proteja a comunidade de todas as cisões e conflitos. No entanto, como argumenta o próprio escritor na entrevista cedida a Elena Brugioni, na sociedade moçam-bicana há “uma acumulação de amnésias e esquecimentos” paralisan-te [Brugioni, 2010: 148]. Em consequência, várias personagens de O Outro Pé da Sereia precisam de reinventar as suas memórias, (re) criando desta maneira os fundamentos da sua identidade. No entanto, as suas travessias terminam apenas quando eles assumem o seu pas-sado e a sua identidade de seres fronteiriços, o que é simbolicamente representado na cena quando Mwadia oferece à estátua de Nossa Se-nhora, ela própria o símbolo de mestiçagem cultural, um lenço, heran-ça da sua avó esclavagista, e uma caixa de rapé, da sua avó escrava. Carmen Tindó Secco analisa esta imagem da santa no final do roman-ce como uma “alegoria dessa mesclagem étnica, religiosa, cultural e histórica que perpassa a sociedade moçambicana, principalmente a região do Zambeze” que “reaproximando tradição e modernidade, revolucionários e opressores, colonizados e colonizadores, escravos e senhores, evidencia que nem sempre esses pares se encontram em oposição” [Secco, 2012: 101].

Em conclusão, a memória em Terra Sonâmbula e O Outro Pé da Sereia é uma narrativa. Uma narrativa que as personagens trau-matizadas como Muidinga ou os moradores de Vila Longe ora apa-gam ora reinventam procurando uma estória que pudesse exprimir a sua vida, a sua história, a sua identidade. No entanto, essa memó-ria imaginada e em constante transformação não é simplesmente uma memória individual, mas é sempre interligada com as múlti-plas memórias da nação moçambicana. De facto, esta pluralidade de memórias/estórias que se tecem ao longo dos romances destaca a necessidade de relembrar e recontar certos episódios da complexa história de Moçambique para poder construir uma narrativa da(s) memória(s) da nação, heterogénea e variada como as próprias pes-soas que a compõem.

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